A série “Adolescência” e o desconforto dos adultos falíveis que somos
- Daniela Leal
- 24 de mar.
- 3 min de leitura
A série Adolescência chegou com quatro episódios que parecem abalar quem a vê de forma intensa e reflexiva. A cada cena, quem assiste sente um desconforto crescente, uma preocupação inevitável, um medo genuíno. O motivo? Porque, no fundo, Jamie podia ser o nosso filho.

Mas... e se já for?
Jamie é o filho de todos nós. Um adolescente comum, sem grandes sinais de alerta, sem comportamentos que despertem inquietação imediata. Uma família aparentemente normal. E, no entanto, ele comete um homicídio aos 13 anos.
Como psicóloga, trabalho diariamente com adolescentes, pais e professores. Se houvesse uma frase que mais ouço destes adultos quando falamos sobre adolescentes, seria: "Ele/a não fala". Em contexto clínico, contudo, os pais surpreendem-se ao perceber que essa dificuldade de expressão nem sempre se confirma.
Na série, temos um pai polícia que, ao investigar este caso de homicídio, se vê, talvez pela primeira vez em muito tempo, verdadeiramente a olhar para o seu próprio filho. Descobre que ele sofre bullying. Que está sozinho. Que não reconhece o próprio filho e, pior, não fala a sua linguagem.
Por outro lado, o pai de Jamie também se pergunta onde falhou. Cresceu sob agressões brutais do seu próprio pai e prometeu que nunca faria isso aos seus filhos. Cumpriu essa promessa. E, ainda assim, o seu filho é um homicida aos 13 anos. Ele não consegue identificar o erro, a falha tão grande que pudesse ter conduzido até aqui. Mas recorda, com dor, o momento em que o excesso de trabalho tomou o lugar do convívio familiar.
E nós? Podemos falhar exatamente nos mesmos pontos.
A distância existe de muitas formas
Somos de gerações diferentes. Falamos linguagens diferentes. E, enquanto os pais perdem o fio condutor da comunicação, alguém o encontra.
Quem? Influenciadores não tão bem-intencionados, que moldam jovens a partir das suas vulnerabilidades. A série aborda este fenómeno através da referência de figuras como Andrew Tate, um criminoso misógino, racista e LGBTfóbico, cuja mensagem se espalha precisamente porque ativa os gatilhos emocionais do rapaz adolescente heterossexual comum. É alguém que oferece um ideal tóxico de masculinidade, ensinando que o problema dos homens são as mulheres, que a frustração sexual se resolve com domínio e que a vulnerabilidade é fraqueza. E que é possível “vencer” a regra do 80-20 através da violência, da agressão, da subjugação.
Jamie absorve essas ideias. O episódio da série com a psicóloga é a perfeita ilustração disso. Ele não consegue esconder a sua raiva e desprezo quando confrontado com perguntas como “O que é ser homem?” e observa que aquela mulher tem mais poder do que ele naquele espaço, pela beleza, estatuto e relevância social de que usufrui (e que ele não reconhece em si próprio). É a luta do adolescente que não aceita a sua própria fragilidade e a expressa através agressividade impulsiva, a oscilação emocional, o desespero silencioso, o ódio, mas a fragilidade de quem tem como capricho um chocolate quente com docinhos dentro. Jamie podia ser o colega de mesa do nosso filho, do nosso adolescente mais próximo. Ou, pior, poderia mesmo ser o nosso filho.
O Que Nos Assusta Tanto?
Porque sentimos um aperto no peito e um incómodo que não quer calar ao assistir Adolescência? Porque não há respostas fáceis. Porque a culpa parece diluir-se entre todos e, ao mesmo tempo, não pertencer a ninguém. Porque Jamie é um homicida, mas também um adolescente que se urina com medo quando a polícia entra em sua casa e o acusar de algo que, efetivamente, cometeu.
E nós? Que lugar ocupamos nesta história? Que erros estamos a cometer agora, sem sequer perceber? Ou, por outro lado, que esforços estamos a fazer para sermos adultos mais conscientes, mais presentes? Figuras de referência que sabem equilibrar a sua presença e a independência dos/as adolescentes?
A machadada emocional final desta série vem na cena em que o pai de Jamie beija o peluche do filho e pede desculpa. "Eu devia ter feito mais".
Sabemos todos que devíamos fazer mais. Agora. Enquanto ainda há tempo. Enquanto ainda conseguimos abrir um canal de diálogo real, que não aciona gatilhos emocionais, mas que é capaz de os desmontar. Que ensina adolescentes a terem voz e não a calar a voz de quem os/as rodeia. As telas estão presentes todos os dias, a toda a hora com a falsa sensação de confiança e proximidade que sabem criar, capazes de substituir aquela que não entregamos. Por foco noutras dimensões, por ingenuidade, por distração, porque não sabemos o que fazer mais. É hora de um esforço consciente para falarmos a linguagem dos/as nossos adolescentes.
Porque se não falarmos a sua linguagem, alguém vai falar.
Palavras-Chave: adolescência; série; Netflix; clínica
Comentarios